Super-crente
Estava numa cidade do interior
brasileiro, que não vem aqui a propósito, com uma amiga, que não interessa
quem, para a ajudar numa tarefa, que não vem ao caso.
Havia chegado à uns meses da Europa, pelo que ainda beneficiava da
aura de inocência, que aos meninos e aos tolos tudo se desculpa. Ainda ia
aprendendo a conviver com os usos e costumes locais. Os jeitos ora familiares
ora bizarros, de cada povo viver a sua rotina e a vivência da sua tradição.
Esta por vezes herdada duma sabedoria de milénios na vivência própria duma
realidade cultural, outras vezes herdada, por imposição ou tola aquisição, pela
generalizada ignorância grosseira.
O sol reinava no seu apogeu
diário. Implacável! Alvejando tudo e todos com um calor medonho. Cada sombra
era uma trégua suplicada. Entrarmos no restaurante com ar refrigerado foi um
bálsamo, que noutras eras só os deuses poderiam desfrutar. Como sempre,
procurei pôr toda a minha atenção em cada gesto e em cada escolha que fazia de
entre as várias iguarias gastronómicas expostas ao apetite dos comensais, que
livremente se serviam aprovisionando o seu prato, antes de nos dirigirmos às
mesas.
Éramos três: eu, a minha amiga e
uma colega sua que fazia parte da equipa de trabalho. A conversa decorreu
fluida e agradável. Até ao momento em que, de novo e pela enésima vez, ouvi a
referencia de “crentes” a um determinado grupo de alinhamento religioso.
- Não entendo essa de “crentes”!
Crente é todo aquele que acredita em algo. Não percebo porque razão se hão-de
uns auto-denominar como crentes, como se os outros não tivessem também crenças
válidas e igualmente dignas de respeito e louvor. – retorqui eu, interrompendo
um diálogo, em que eu havia sido remetido para um papel de mero figurante
colateral, mais perto do desprezo que da amizade.
Dois pares de olhos me olharam,
com espanto. Um deles com uma contida, a custo, indignação e o outro
embaraçado, contudo sem conseguir esconder o divertimento da ironia. Um
silêncio sepulcral foi a resposta que obtive. Até que as duas retomaram o
diálogo, ignorando por completo e ostensivamente a minha observação.
Mais tarde, a sós, a minha amiga
me elucidou: “Ela é evangélica! E eles, os evangélicos, acham-se os “crentes”
verdadeiros e assim se designam entre si e perante todos.” A minha amiga é
católica; faz parte desse grupo esdrúxulo que se define como “católicos não
praticantes” (designação essa que para mim é das coisas mais hilariantes deste
mundo, com tão poucos motivos para rir). Eu não sou nada dessas coisas, apenas
me defino como um homem religioso, por ter as minhas próprias crenças e
convicções, fora do espartilho de qualquer instituição, que só a mim dizem
respeito.