terça-feira, 28 de agosto de 2012

NEFERTITI



Éramos um grupo grande e bem heterogéneo, ocupando grande parte da plateia esgotada do teatro. A peça era massivamente divulgada nos órgãos de comunicação, como um expoente da nova dramaturgia inter-disciplinar, por recorrer a vários suportes multimédia para maior abrangência do discurso cénico. Motivo de empolgação geral pela curiosidade e vaidade de querer estar presente num momento único e acessível a poucos.

Chegada a hora, todos nos seus lugares, ansiosos, expectantes. As luzes do grande salão apagam e com nervosismo tudo se aquieta. Alguém sai da cortina de palco e apresenta um breve discurso de desculpas: uma das actrizes principais adoeceu subitamente, não havendo tempo de se proceder à sua substituição, reunido o elenco e a produção, todos concordaram em seguir o espectáculo mesmo sem essa actriz/personagem.

??? O quê? Como assim? Não faz falta? Bem, quem sou eu para questionar os juízos das doutas cabeças intelectuais que ditam a modernidade e os seus destinos culturais!

E deu-se início ao espectáculo. Mais expectativa! Mais ansiedade! Mais curiosidade em ver como tamanha raridade multidisciplinar, com recurso às mais modernas tecnologias de palco se revelaria em deslumbramento! Mas o deslumbramento foi pela sensaboria imensa, dum tédio atroz, que raiava quase a fúria de ter gasto tempo e dinheiro para assistir a tamanha patacoada!

Impacientemente esperei o desejado intervalo, tentando não exteriorizar a irrequietude que me consumia a alma furibunda com tamanho dislate dramatúrgico. E ele, o abençoado intervalo, finalmente chegou. Toda a gente fugiu para o foyer (vestíbulo). O nosso grupo tentava reunir-se, buscando um parecer nos olhares confusos uns dos outros. Ensaiavam-se receosos elogios, baseados numa afirmada ignorância de altos quesitos cénicos. Ninguém percebera nada do que se passara em palco, nem encontraram motivo algum para se agradarem do que tinham acabado de assistir, mas faltava a coragem de contrariar os doutos louvores que a critica especializada derramava pelos jornais e magazines. Seria um revelar a sua ignorância e falta de preparo intelectual.

Ao me acercar do grupo central, em que se encontrava a co-organizadora daquelas surtidas culturais, ela me fisgou para junto de si e me disparou à queima-roupa: “Tu que és o artista e intelectual do grupo diz qual o teu parecer. O que achaste?” Eu não iria recusar a oportunidade de dizer, alto e bom som, aquilo que sabia todos estarem a pensar.

- «É uma grande merda! Uma chatice de todo tamanho! Só não me vou embora já porque temos de esperar que o transporte nos venha recolher à hora marcada. E acredito que todos aqui estão pensando o mesmo que eu. Na verdade eles têm razão, a pobre que adoeceu, não faz mesmo falta nenhuma, pois nem se notou a sua ausência na imensa monotonia que é o texto e a encenação.» – Despejei e quase fui aplaudido.

Um suspiro geral descarregou a tensão que antes se acumulava nos semblantes e toda gente desatou a desfiar uma verborreia agastada com tamanha xaropada.

A segunda parte foi mais tranquila e quase divertida, com os entre-olhares do nosso grupo que se divertia numa troça velada à prosápia fastidiosa e embalsamada dos emplastros em cena.

Acho essas modas super-ultra-hiper-elitisticamente-intelectuais, ou pretensamente intelectuais, o cúmulo da jactância arrogante duns badamecos que perderam a mais completa afinidade com o mundo real. Arte tem de ser para todos e não para um pequeno núcleo de mentes herméticas, em códigos inúteis e sem sentido.


Teatro da Trindade, Lisboa

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

MEU AMOR

Antigo Mercado Modelo do Derby, Recife


Entrei no mercado e logo fui envolvido pela mistura de aromas, cores e burburinho. Gente movendo-se para cá e para lá, atarefada.

A manhã estava quente. Lá fora o sol abatia-se ferozmente sobre tudo que se expusesse na rua apinhada de gente, veículos motorizados de toda espécie e barracas de venda oferecendo toda a variedade de produtos. O cheiro de fruta podre, acumulada na berma da rua, misturado ao de urina, vindo dos becos transversais, impregnava o ar, sufocante de quente, com um odor nojento e insalubre. Mas a populaça apressava-se indiferente; comprando, regateando e apressando-se indiferentemente.

Aliviado por conseguir fugir do inferno da rua, alegrei-me por ver que na primeira banca havia o que procurava. Dirigi-me com simpatia ao vendedor do outro lado do balcão, um jovem aparentando uns 30 anos com bom aspecto.

- Bom dia, meu querido! – saudou-me ele com simpatia, atirando-me um largo e animado sorriso. Eu vacilei, embaraçado com a intimidade, mas sem perder a cordialidade.

Eu indaguei sobre a mercadoria que pretendia e os preços. Ele sempre me respondia com alegria e a mesma intimidade cúmplice de “meu amor”, “meu lindo”,  “meu querido”. Os seus olhos brilhavam de simpatia e o meu amor-próprio coruscava, lustrado pelos seus epítetos sedutores. Claro que eu não iria deixar de comprar o que quer que ele me quisesse vender.

Depressa o espanto se diluiu perante a realidade. Afinal eu estava noutro continente, entre as gentes dum outro povo, com hábitos e posturas bem diferentes daquelas com que toda a vida convivera. Logo percebi que seria muito mais fácil viver sendo apaparicado, mesmo que verbalmente, por quem se cruzasse no meu caminho.

E foi com um tímido “Tchau, meu querido!” que arrisquei meu primeiro envolvimento com esse à vontade no trato, que tão bem me sabe ao ego e amor-próprio. 

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

NÃO É



Quando vi esta foto lembrei do bairro de Boa Viagem, no Recife. Mas nem as montanhas ao fundo são Olinda, nem a avenida de Boa Viagem é tão sinuosa, muito menos há embarcações nas praia de Boa Viagem. Apenas os arranha-céus lembram alguma semelhança.

Recife é uma cidade que nasceu dum porto marítimo mas vive de costas para o mar. Ela não teve origem no estabelecimento de nenhum pequeno núcleo humano pesqueiro, que depois se tenha desenvolvido. A cidade formou-se a partir do porto que a vizinha Olinda precisava para escoar o açúcar produzido nas plantações do interior, assim como da necessidade de importação de bens para satisfação duma classe de proprietários e produtores cada vez mais abastada e sequiosa de luxos.

Embora o porto do Recife fique junto ao centro histórico da cidade, desse mesmo centro não se consegue avistar nenhum navio. A arquitectura da cidade barra o acesso ao mar. Só no passado as grandes casas de famílias abastadas, da periferia rural, eram voltadas para os rios e afluentes, por estes serem usados como vias de acesso. Mas com a expansão urbana e a introdução de vias de comunicação e transporte terrestres esse vínculo perdeu-se e foi ignorado.

A cidade vive de costas para o mar que a bordeja. Para os recifenses, o mar serve apenas para ir chapinhar em veraneios balneares. Esta indiferença nota-se até na gastronomia, onde predominam os pratos de carne e de tradição rural sendo o peixe quase completamente ausente. 

Mas como toda a regra tem uma excepção, salva-se o bairro de Brasília Teimosa. A população que obstinadamente o fundou, viu no mar um recurso de subsistência. Aí situam-se restaurantes para quem seja amante dos produtos do mar: peixes e mariscos.

Pela observação do estilo de vida e tradições da população recifense  digo que Recife não é uma cidade marítima, mas sim uma cidade de interior implantada na orla litoral.



Nota: Não me perguntem que cidade é a da foto ao cimo, pois não sei. Apanhei a imagem na internet e serve bem os meus propósitos. A de baixo sim, é Recife.

Recife