sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

MOBILIDADE URBANA I




Mobilidade urbana é o grande tema da actualidade, num mundo cada vez mais citadino e menos rural. A elevada concentração populacional cria enormes problemas na vida das cidades, muitas das vezes pela falta de políticas correctas e corajosas de organização e gestão dos espaços, dos modos de vida e locomoção. A situação é ainda mais grave quando os órgãos de poder e decisão se encontram manietados por grandes interesses corporativos e financeiros.

A coragem de organizar o espaço público em função dos interesses gerais, acima dos benefícios particulares, é algo temerário e impensável para os políticos de hoje. Afinal quem controla e dirige os destinos da política e das nações nos nossos dias são os grandes interesses corporativos e económicos.

A definição do espaço urbano em função do ser humano é imprescindível para o conceito de cidade saudável. As cidades actuais herdaram centros arcaicos inapropriados para os modos de vida de hoje e continuam caindo em erros de urbanismo, muitas vezes ditados por interesses empresariais e corporativos. 

Os espaços urbanos não podem ser zonas estanques divididas em áreas de interesses e conveniências económicas particulares. Todo o cidadão tem de ter no seu raio de acção todo o tipo de recursos que necessite para a vivência do seu quotidiano. Ele tem de ter acesso pelos seus próprios meios físicos naturais a partir da sua residência, a tudo o que necessita para viver; educação, lazer, trabalho, saúde, provimentos (comércio e serviços).

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

PORTUGAL E MODERNIDADE



Numa Europa feudal, Portugal inventa-se como a primeira nação europeia com identidade cultural e nacional próprias, e fronteiras definidas. Sim, Portugal é o país da Europa com fronteiras definidas à mais tempo. Eu diria até, a nação europeia mais antiga.

Pela mão firme e engenhosa do jovem conde D. Afonso Henriques (D. Afonso I de Portugal) é estabelecido um novo reino em que se antevê já uma modernidade administrativa conducente ao fim do feudalismo. D. Afonso não aceita submeter-se à tradição de vassalagem sobre a qual era construído o feudalismo e no seu levantamento contra o rei de Leão e Castela é apoiado pela burguesia do Condado Portucalense, futuro Reino de Portugal.

A burguesia portuguesa acompanha D. Afonso Henriques na sua confrontação ao sistema feudal vigente, permanecendo ao seu lado nas suas pretensões de centralização do poder territorial nas mãos do rei. Assim, desde o seu início e ao longo da história portuguesa, o envolvimento da burguesia revela-se determinante na delineação dos rumos do país.
Numa Europa rural (pois o feudalismo assenta nos direitos da posse da terra) Portugal afirma-se como uma emergente potencia mercantil, o que induz à sua vocação de expansionismo ultramarino.

A burguesia apresenta-se ao lado de D. Afonso Henriques, apoiando-o nas disputas que este manteve com os seus vizinhos e rivais na consolidação da independência nacional. A burguesia esteve ao lado do Mestre de Avis no levantamento pela autonomia portuguesa contra os interesses castelhanos. A burguesia acompanhou o projecto de expansão mercantil além-mar e, de novo, se levantou contra os interesses de Espanha, quando D. João de Bragança liderou a Restauração. Também foi a burguesia que fortaleceu o movimento constitucionalista, que de novo poria Portugal entre as nações da modernidade.

Foi junto da burguesia que o visionário e modernista Marquês de Pombal encontrou apoio e terreno fértil para as suas ideias e medidas de modernização económica, duma nação decadente e estagnada num comodismo confrangedor.

A despeito da arrogância da inapta fidalguia portuguesa, a burguesia lusa sempre esteve envolvida nos avanços significativos da nação, rebocando o país para uma modernidade contemporizadora.

sábado, 15 de dezembro de 2012

CONSTITUIÇÃO E REALIDADE



Mais uma vez um massacre de inocentes ocorreu nos civilizadíssimos EUA. Mais uma vez, por lá, vozes se levantam, a medo, pedindo um sério e livre debate sobre o direito de porte de armas. A medo porque a sacrossanta Constituição assegura o direito inabalável de todo e qualquer cidadão ser portador de arma de fogo para sua própria protecção. E todos receiam ser considerados traidores se questionarem disposições regulamentadas noutra era, noutros enquadramentos sociais, estratégicos e históricos.

Todos consideram as Constituições nacionais instrumentos sagrados de regulamentação, mas convém não esquecer que não deixam de ser documentos estáticos, parados no tempo, se não forem contemporizados e frequentemente reavaliados perante a realidade do momento. As sociedades são elementos evolutivos que progridem em novos ideais e modelos, pelo que os regulamentos que as ordenam devem ser continuamente actualizados.

Todos sabemos que há sempre quem espreite uma oportunidade de tirar vantagem na tentativa de usurpar poder. Mas não pode ser por isso que se deixará de fazer as devidas avaliações e alterações no que perdeu enquadramento e se desarticulou da realidade. Afinal uma Constituição não deixa de ser um instrumento oportuno, ditado por uma elite que em determinado momento assumiu poder e liderança.

Nada é sagrado, no mundo dos humanos. Inteligência implica observação e julgamento.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

CHAMINÉS



Foi com alguma estranheza que a dada altura, da minha estadia aqui no Recife, comecei a perceber que as casas não tinham chaminé. Primeiro comecei por notar essa ausência dentro das casas, o que me levou a olhar para os telhados em busca delas. Por aqui chaminés só as de estruturas industriais.

As cozinhas não têm chaminé, nem nenhum sistema de extracção de fumos. Muitas vezes o fogão até fica afastado de qualquer janela ou ponto de ventilação. Isto num clima tropical com uma temperatura média de 29 todo o ano.

Uma justificação (não académica) que ouvi foi que já não haviam mais fogões de lenha dentro das casas. Mas mesmo nas construções antigas não vejo chaminés ou qualquer outro dispositivo semelhante. Além de que a chaminé não serve apenas para extracção de fumos e odores, mas sim para ventilação (climatização). Tal dispositivo  ajudaria a regular a temperatura interior das casas ao possibilitar o arejamento das mesmas deixando o ar quente escapulir-se, pois este tem sempre tendência a subir. Acredito ser um dispositivo muito conveniente em regiões com um clima tropical, onde as temperaturas são elevadas durante todo o ano.

Não precisariam ser tão elaboradas, em rica decoração, como as chaminés algarvias (um exemplo na foto acima). Acredito que as chaminés trariam um charme utilitário às habitações recifenses. Mas, se alguém me quiser explicar o motivo real porque não são usadas chaminés nas casas recifenses, eu agradeço.

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

AZEITE SPRAY

Podem achar anedótico, mas não é anedota. Podem achar que é esquisitice minha, mas não é. Poderão os não lusos entender que não é caso para tanto, mas acredito que muitos dos meus amigos portugueses, e aqueles que mesmo não o sendo já viveram em Portugal e conhecem os hábitos gastronómicos portugueses, entenderão a minha estupefacção, senão mesmo indignação.

Outro dia, num restaurante aqui no Recife, pedi azeite, para poder regar condignamente os legumes cozidos e a salada. Com espanto meu apresentaram-me uma garrafinha de spray de azeite. Não sabia se havia de rir ou gritar por socorro: “Levem-me para a minha terra!” Procurei entre os outros frascos de molhos e temperos, mas só encontrei outros dois iguais: azeite spray.

De acordo que o azeite não é um artigo de produção local, pelo que não faz parte dos costumes e gastronomia nordestina, ou mesmo brasileira, além de que por ter de ser importado é muito caro, mas daí a ter que borrifar a minha salada com uns aspergidos de azeite... Poupem-me!



segunda-feira, 29 de outubro de 2012

BANDEIRAS DO BRASIL


Ao longo da sua história, desde colónia até nação independente foram várias as bandeiras que o Brasil conheceu como símbolo da sua unidade territorial e política.

A listagem que a seguir se descreve é baseada nas bandeiras reconhecidas oficialmente e honradas pelo Exército Brasileiro, como se pode verificar na foto acima. Foi após uma visita ao Forte do Brum, no Recife, que me ocorreu a ideia para esta mostragem, ao ver as 13 bandeiras lá expostas em lugar de honra no salão nobre.

A primeira bandeira que o Brasil conheceu arvorada em solo, foi a da Ordem de Cristo, patrocinadora das navegações portuguesas à época. As naus da frota de Pedro Álvares Cabral, tal como todas as naus portuguesas, ostentavam  nas suas velas a cruz símbolo da rica e poderosa ordem.

A primeira bandeira oficial do Brasil foi a utilizada por D. Manuel I, que sobrepunha à cruz da Ordem de Cristo o Brasão de Aramas de Portugal. Esta bandeira esteve presente em todos os eventos principais da expansão do novo território e do estabelecimento do Governo Geral da Bahia, embora o estandarte da Ordem de Cristo continuasse a ser relevante nos cerimoniais e missões de exploração e colonização.
Na crise da sucessão, criada pela morte prematura de D. Sebastião, foi adoptada nova bandeira para Portugal, que foi respeitada por algum tempo pelos reis espanhóis, que vieram a tomar o poder da coroa portuguesa.
Com a subida ao trono de D. Filipe I, o Brasil conhece nova bandeira. Atribuída pela Dinastia Filipina às possessões portuguesas além-mar, esta bandeira vigorou de 1616 a 1640. Devido à incúria dos reis espanhóis com os interesses e territórios portugueses, foi sob esta bandeira que o Brasil assistiu às invasões holandesas no nordeste, mas também à continuação da expansão bandeirante.
Em 1640 o Duque D. João de Bragança, lidera a revolta contra a Dinastia Filipina e restaura a independência de Portugal perante a coroa espanhola. É aclamado rei e sobe ao trono como D. João IV, tendo escolhido uma nova bandeira para si. Esta era conhecida como a Bandeira da Restauração. A borda azul é alusiva à consagração da Senhora da Conceição como padroeira e soberana de Portugal.
Em 1645 o rei, D. João IV cria o título de Príncipe do Brasil, para o seu filho herdeiro D. Teodósio. Criou-se também a bandeira para o Principado do Brasil, que foi assim a primeira bandeira atribuída exclusivamente à designação politica e territorial brasileira. Esta bandeira vigorou até 1816, simultaneamente com as outras bandeiras régias nacionais que a ela se sobrepunham em representatividade de soberania.



Com a subida ao trono de D. Pedro II em 1683, o Brasil conhece mais uma bandeira. O Estandarte Real de D. Pedro II, foi a primeira bandeira de fundo verde a ondular sobre o território brasileiro. Foi ela que presidiu ao auge das expedições bandeirantes.
Ao longo do século XVII e início do XVIII foi também usada a bandeira real, junto com a do principado e outros estandartes reais. Tal deve-se a uma herança feudal absolutista de associar os símbolos da nação ao monarca reinante, pelo que não havia a definição de uma bandeira única para as nações. O símbolo da nação era o seu brasão de armas que fazia parte de todas as bandeiras, estandartes ou jaques.
Com a vinda da corte para o Brasil é estabelecido o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, tendo sido consagrada bandeira em 1816. Nela o Reino do Brasil é representado pela esfera armilar em fundo azul.
Depois da guerra civil portuguesa e com a instauração do regime constitucional, Portugal conhece outra bandeira, que viria a ser bandeira nacional até ao fim do regime monárquico. Esta bandeira teve curto período de permanência nos céus do Brasil, pois logo D. Pedro declara a independência.



 Com a independência declarada por D. Pedro I, é adoptada a Bandeira do Império, onde aparecem símbolos e cores comuns aos estandartes reais dos Braganças.
Após a instauração da república, a 15 de Novembro de 1889, o Brasil conheceu uma bandeira provisória por 4 dias, inspirada na bandeira dos Estados Unidos da América do Norte.
Com decreto de 19 de Novembro de 1889, foi instituída a Bandeira da República Federativa do Brasil, baseada na Bandeira do Império.


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A DANÇA DE PEDRA DO CAMALEÃO



Ricardo Pinto escreveu uma trilogia, que alguns tentam enquadrar no género fantástico, outros no de ficção-científica, mas que para o autor não se inscreve em nenhuma categoria específica. “A Dança de Pedra do Camaleão” é uma alegoria crua e desabrida do mundo em que vivemos, com todas as suas decadentes grandezas e agonizantes misérias. É também a história da auto-descoberta dum jovem e do seu papel num mundo, que ele rejeita ao perceber o seu lugar nele.

Com todos os ingredientes dum grande épico, “A Dança de Pedra do Camaleão” é uma epopeia arrebatadora que nos transporta, através duma escrita requintada e envolvente, por um mundo transbordante de emoções.

Volume I: “Os Escolhidos”; volume II: “Os Guardiães dos Mortos”; volume III: “O Terceiro Deus”.

Estes livros eu os levarei sempre comigo. Minha leitura favorita de sempre e em qualquer momento.

Pena que não haja nenhuma edição no mercado brasileiro.



Ricardo Pinto

domingo, 7 de outubro de 2012

LIVROS



Recolhi este curto inquérito do blog do Bratz (inquérito que ele respondeu com soberba mestria e apresentando verdadeiros tesouros da nossa cultura ocidental)(*). Agradado com a temática proponho-me aqui responder ao meu modo e, como não sou dessas correntes, deixo livre a oportunidade a quem queira candidatar-se à revelação das suas opiniões literárias.

Como disse acima, irei responder ao meu modo, o que significa que não me restringirei às regras do meme.

1 – Existe um livro que eu leria muitas vezes sem me cansar? Qual?
Há sempre um livro que gostamos de reler. No meu caso existem vários que gosto de voltar a visitar. Neste momento o que me ocorre é “Memorias de Adriano” de Marguerite Yourcenar. Uma biografia ficcionada do Imperador Adriano, narrado na primeira pessoa. Um exemplar testemunho na escrita erudita, mas agradável, da autora de muitas obras de referencia. Outro livro que durante muitos anos revisitei, em busca de reflexões e porque não em busca dum conselho paternal, foi “De Profundis – Epistula in Cárcere” de Óscar Wilde. Volume que durante anos conservei na minha cabeceira, até ao dia em que o ofereci à minha sobrinha, num gesto simbólico, como passagem de testemunho. Companheiro sempre desejável é “Tao, O Caminho do Meio” de Lao-Tze, por razões tão óbvias que nem as referirei.

2 – Se eu pudesse escolher apenas um livro para o resto da minha vida, qual escolheria?!
Ah! Mas isso é maldade... Apenas um?! Ora vejamos... Não irei repetir os da resposta anterior, embora os incluísse na lista sem hesitação, tal como o faria com o livro da resposta seguinte. Entre “Maurice” de E.M. Forster, “Memórias de uma Máscara” de Yukio Mishima,  escolho “101 Histórias Zen”.
Mas o livro que levaria para uma ilha deserta seria “O Livro em Branco", junto com um lápis para ir rabiscando.

3 – Indique um livro para que outros possam ler.
Pensando em todos, tanto nos aficionados pelos prazeres da leitura como nos que nem tanto assim, optei por indicar um livro de contos, pois são profundos, acessíveis na narrativa e curtos para não enfadar os mais ansiosos: “Contos Completos de Óscar Wilde”.

Comum aos três itens é a trilogia “A Dança de Pedra do Camaleão” de Ricardo Pinto, que recomendo vivamente. É uma assombrosa metáfora do nosso mundo e dos nossos governantes. Para onde quer que eu for esses três livros irão sempre comigo.

(*) Mau grado o esforço ultra-chauvinista de muitos, a cultura americana não deixa de ser uma sub-cultura derivada do grande veio cultural ocidental-europeu. Tanto na sua vertente religiosa cristã, quanto na sua vertente filosófica laica.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O AIO



Quero hoje contar um episódio da nobre fundação de Portugal. Uma nação arquitectada por homens e mulheres valorosos e dignos.

Aio (ou aia) era alguém nomeado para ficar encarregue da educação de crianças ilustres e nobres. Normalmente o aio, ou a aia, ficavam para sempre ao serviço do seu senhor, ou senhora, no que hoje poderíamos chamar de serviço de assessoria.

D. Afonso Henriques, ou D. Afonso I de Portugal, foi o fundador da Nação Portuguesa, ao resgatar a autonomia do Condado Portucalense da suserania de D. Afonso VII de Leão e Castela.

Egas Moniz era aio de D. Afonso Henriques.

Aquando das disputas entre os primos(*) beligerantes, Afonso de Leão (rei) cerca Guimarães, onde Afonso de Portucale (conde) havia sediado o seu exército separatista. Egas Moniz com o seu estatuto de preceptor do jovem conde e o respeito devido que a idade lhe conferia, arroga-se como negociador da paz e promete ao rei a submissão de D. Afonso Henriques.

Mas o conde, apoiado por uma larga elite Portucalense que apenas visa a autonomia do condado e sua completa independência, logo pega de novo em armas contra o rei, rompendo o acordo.

Egas Moniz apresenta-se então perante D. Afonso VII com toda a sua família, em vestes de condenados, pondo as suas vidas e honra ao dispor do rei. Este, reconhecendo a nobreza de carácter do aio e a lisura das suas intenções, perdoou-o e ainda lhe ofereceu favores. De volta à corte portucalense o aio também recebeu grandes favores de D. Afonso Henriques, pela sua fidelidade e honradez.

Mas isto era na barbárie dos tempos feudais, da chamada Idade Média. Agora os tempos são outros. Agora vivemos tempos mais civilizados e, tanto tecnologicamente como cientificamente, superiores. Tempos em que a honra foi mandada às ortigas.  Falar em honra nos salões e corredores do poder hoje é uma anedota.

(*)Nota: D. Afonso Henriques e D. Afonso VII eram primos directos. As mães de ambos eram meias-irmãs, filhas de Afonso VI de Leão e Castela.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

CORES




Sobre o verde da relva aparada, um lençol branco se agitava, revolvia, tapava e destapava dois jovens, apaixonados. Um vestia uma camisa azul e outro uma camisa rosada.

- São dois rapazes. – afirmou Tau.
- Não são, não! É um rapaz e uma rapariga. – contestou Ant.
- Não são, não! São dois rapazes como ele disse! – apoiou Fer.
- Não pode ser! É um rapaz e uma rapariga! – insistiu Ant.
- Eu para mim, parecem-me dois rapazes – reafirmou tranquilamente Tau, sem querer parecer indelicado.

Mas, continuámos os três em direcção ao transporte que nos levaria ao destino seguinte, do nosso roteiro turístico.

O que causava tanto embaraço na definição do sexo dos namorados, nem era a dificuldade de lhes distinguir as feições devido à distancia a que estavam de nós, mas ao facto de tal cena se passar no meio de um amplo relvado (gramado, br) em plena Praça da República; um dos pontos nobres e turísticos por excelência, da cidade de Recife. Isto num pais, o Brasil, onde os crimes de homofobia são uma prática quotidiana, com estatísticas e números de ocorrências assustadores, senão mesmo apavorantes. Em 2011, segundo dados do governo central, foram registados 6800 casos de violações dos direitos de integridade física e 278 mortes por homofobia. Só nos primeiros 6 meses de 2012 foram assassinados 165 homossexuais (de ambos os sexos). Muitos dos casos de agressão e homicídio são perpetrados por membros da própria família da vítima.

Finda a agradável tarde de passeio pela cidade o nosso transporte voltou a circular pela mesma praça e lá estavam os dois jovens dobrando as cobertas onde haviam repousado e arrumando a trouxa de pic-nic. Então, em pé e se movimentando, deu bem para ver claramente que se tratava dum casal de rapazes. Os seus olhos continuavam se cruzando com carinhosa cumplicidade e seus lábios tocavam-se em leves beijos.

O espanto e a curiosidade foi geral, entre o nosso grande grupo de veraneantes. Entre nós os três, o acordo foi firmado com tranquilidade e até alguma satisfação, pela digna e tranquila coragem com que os jovens em causa assumiam o seu amor.


Nota: Pernambuco é um dos estados brasileiros onde a união estável entre pessoas do mesmo sexo é reconhecida e registada oficialmente. Assim também Recife é um município que promove campanhas anti-homofobia, tentando se mostrar como uma cidade gay-friendly. Contudo uma  coisa é a lei e a vontade política da nação, outra é a mentalidade popular e a livre propaganda criminosa de facções religiosas odientas e fanáticas.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

NEFERTITI



Éramos um grupo grande e bem heterogéneo, ocupando grande parte da plateia esgotada do teatro. A peça era massivamente divulgada nos órgãos de comunicação, como um expoente da nova dramaturgia inter-disciplinar, por recorrer a vários suportes multimédia para maior abrangência do discurso cénico. Motivo de empolgação geral pela curiosidade e vaidade de querer estar presente num momento único e acessível a poucos.

Chegada a hora, todos nos seus lugares, ansiosos, expectantes. As luzes do grande salão apagam e com nervosismo tudo se aquieta. Alguém sai da cortina de palco e apresenta um breve discurso de desculpas: uma das actrizes principais adoeceu subitamente, não havendo tempo de se proceder à sua substituição, reunido o elenco e a produção, todos concordaram em seguir o espectáculo mesmo sem essa actriz/personagem.

??? O quê? Como assim? Não faz falta? Bem, quem sou eu para questionar os juízos das doutas cabeças intelectuais que ditam a modernidade e os seus destinos culturais!

E deu-se início ao espectáculo. Mais expectativa! Mais ansiedade! Mais curiosidade em ver como tamanha raridade multidisciplinar, com recurso às mais modernas tecnologias de palco se revelaria em deslumbramento! Mas o deslumbramento foi pela sensaboria imensa, dum tédio atroz, que raiava quase a fúria de ter gasto tempo e dinheiro para assistir a tamanha patacoada!

Impacientemente esperei o desejado intervalo, tentando não exteriorizar a irrequietude que me consumia a alma furibunda com tamanho dislate dramatúrgico. E ele, o abençoado intervalo, finalmente chegou. Toda a gente fugiu para o foyer (vestíbulo). O nosso grupo tentava reunir-se, buscando um parecer nos olhares confusos uns dos outros. Ensaiavam-se receosos elogios, baseados numa afirmada ignorância de altos quesitos cénicos. Ninguém percebera nada do que se passara em palco, nem encontraram motivo algum para se agradarem do que tinham acabado de assistir, mas faltava a coragem de contrariar os doutos louvores que a critica especializada derramava pelos jornais e magazines. Seria um revelar a sua ignorância e falta de preparo intelectual.

Ao me acercar do grupo central, em que se encontrava a co-organizadora daquelas surtidas culturais, ela me fisgou para junto de si e me disparou à queima-roupa: “Tu que és o artista e intelectual do grupo diz qual o teu parecer. O que achaste?” Eu não iria recusar a oportunidade de dizer, alto e bom som, aquilo que sabia todos estarem a pensar.

- «É uma grande merda! Uma chatice de todo tamanho! Só não me vou embora já porque temos de esperar que o transporte nos venha recolher à hora marcada. E acredito que todos aqui estão pensando o mesmo que eu. Na verdade eles têm razão, a pobre que adoeceu, não faz mesmo falta nenhuma, pois nem se notou a sua ausência na imensa monotonia que é o texto e a encenação.» – Despejei e quase fui aplaudido.

Um suspiro geral descarregou a tensão que antes se acumulava nos semblantes e toda gente desatou a desfiar uma verborreia agastada com tamanha xaropada.

A segunda parte foi mais tranquila e quase divertida, com os entre-olhares do nosso grupo que se divertia numa troça velada à prosápia fastidiosa e embalsamada dos emplastros em cena.

Acho essas modas super-ultra-hiper-elitisticamente-intelectuais, ou pretensamente intelectuais, o cúmulo da jactância arrogante duns badamecos que perderam a mais completa afinidade com o mundo real. Arte tem de ser para todos e não para um pequeno núcleo de mentes herméticas, em códigos inúteis e sem sentido.


Teatro da Trindade, Lisboa

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

MEU AMOR

Antigo Mercado Modelo do Derby, Recife


Entrei no mercado e logo fui envolvido pela mistura de aromas, cores e burburinho. Gente movendo-se para cá e para lá, atarefada.

A manhã estava quente. Lá fora o sol abatia-se ferozmente sobre tudo que se expusesse na rua apinhada de gente, veículos motorizados de toda espécie e barracas de venda oferecendo toda a variedade de produtos. O cheiro de fruta podre, acumulada na berma da rua, misturado ao de urina, vindo dos becos transversais, impregnava o ar, sufocante de quente, com um odor nojento e insalubre. Mas a populaça apressava-se indiferente; comprando, regateando e apressando-se indiferentemente.

Aliviado por conseguir fugir do inferno da rua, alegrei-me por ver que na primeira banca havia o que procurava. Dirigi-me com simpatia ao vendedor do outro lado do balcão, um jovem aparentando uns 30 anos com bom aspecto.

- Bom dia, meu querido! – saudou-me ele com simpatia, atirando-me um largo e animado sorriso. Eu vacilei, embaraçado com a intimidade, mas sem perder a cordialidade.

Eu indaguei sobre a mercadoria que pretendia e os preços. Ele sempre me respondia com alegria e a mesma intimidade cúmplice de “meu amor”, “meu lindo”,  “meu querido”. Os seus olhos brilhavam de simpatia e o meu amor-próprio coruscava, lustrado pelos seus epítetos sedutores. Claro que eu não iria deixar de comprar o que quer que ele me quisesse vender.

Depressa o espanto se diluiu perante a realidade. Afinal eu estava noutro continente, entre as gentes dum outro povo, com hábitos e posturas bem diferentes daquelas com que toda a vida convivera. Logo percebi que seria muito mais fácil viver sendo apaparicado, mesmo que verbalmente, por quem se cruzasse no meu caminho.

E foi com um tímido “Tchau, meu querido!” que arrisquei meu primeiro envolvimento com esse à vontade no trato, que tão bem me sabe ao ego e amor-próprio. 

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

NÃO É



Quando vi esta foto lembrei do bairro de Boa Viagem, no Recife. Mas nem as montanhas ao fundo são Olinda, nem a avenida de Boa Viagem é tão sinuosa, muito menos há embarcações nas praia de Boa Viagem. Apenas os arranha-céus lembram alguma semelhança.

Recife é uma cidade que nasceu dum porto marítimo mas vive de costas para o mar. Ela não teve origem no estabelecimento de nenhum pequeno núcleo humano pesqueiro, que depois se tenha desenvolvido. A cidade formou-se a partir do porto que a vizinha Olinda precisava para escoar o açúcar produzido nas plantações do interior, assim como da necessidade de importação de bens para satisfação duma classe de proprietários e produtores cada vez mais abastada e sequiosa de luxos.

Embora o porto do Recife fique junto ao centro histórico da cidade, desse mesmo centro não se consegue avistar nenhum navio. A arquitectura da cidade barra o acesso ao mar. Só no passado as grandes casas de famílias abastadas, da periferia rural, eram voltadas para os rios e afluentes, por estes serem usados como vias de acesso. Mas com a expansão urbana e a introdução de vias de comunicação e transporte terrestres esse vínculo perdeu-se e foi ignorado.

A cidade vive de costas para o mar que a bordeja. Para os recifenses, o mar serve apenas para ir chapinhar em veraneios balneares. Esta indiferença nota-se até na gastronomia, onde predominam os pratos de carne e de tradição rural sendo o peixe quase completamente ausente. 

Mas como toda a regra tem uma excepção, salva-se o bairro de Brasília Teimosa. A população que obstinadamente o fundou, viu no mar um recurso de subsistência. Aí situam-se restaurantes para quem seja amante dos produtos do mar: peixes e mariscos.

Pela observação do estilo de vida e tradições da população recifense  digo que Recife não é uma cidade marítima, mas sim uma cidade de interior implantada na orla litoral.



Nota: Não me perguntem que cidade é a da foto ao cimo, pois não sei. Apanhei a imagem na internet e serve bem os meus propósitos. A de baixo sim, é Recife.

Recife

quarta-feira, 25 de julho de 2012

PRETÃO



Nêgão não. Pretão mesmo!

É todos os meses a mesma vergonha! No dia dos idosos e incapacitados receberem as suas pensões do INSS no Itaú, uma das duas sucursais dessa instituição bancária situadas no Largo da Paz (Afogados, Recife-PE) está sempre com o sistema informático em baixo e de portas fechadas. Coincidência assaz estranha.

Ora, tal infortúnio leva a que toda essa gente, com dificuldades e incapacidades, se tenha de deslocar para a sucursal vizinha. Aí, perante o acumular de gente de dois balcões em apenas um, gera-se a maior confusão e desnorteamento.

Colho informações aqui e ali e finalmente tomo o meu lugar no termo duma fila imensa. O local estava repleto. Uma muvuca heterogénea e incaracterística, onde predominava o mau gosto e a decadência, tentando esconder a miséria material de quem não nasceu com direito a sombra. Senão àquela com que os mais ricos exploram os mais desvalidos.

O meu olhar vaga por sobre as cabeças velhas e irrequietas. Lá à frente, acima do mundim, destaca-se um jovem alto e forte. Delicioso tom de chocolate negro, de carnes cheias – sem ser gordo, nem nenhuma daquelas aberrações hiper-musculadas, entufadas de esteróides anabolizantes. A tez negra coruscava e brilhava acima da populaça perfilada e amontoada. Alto e distinto, com um porte nobre, mas humilde, era um farol, um magneto atraindo o meu olhar, sempre ávido de beleza. O negro dos ombros musculosos, espreitando além das alças da camiseta, destacava-se da massa informe de cabeças nervosas. Com calma e suavidade amparava a mãe que mostrava dificuldade de locomoção. Paciência de filho amoroso denunciada pelo sorriso feliz e orgulhoso da senhora. Bem ela se podia orgulhar, não só da beleza que pariu, mas do excelente carácter humano que o sereno e carinhoso olhar dele denunciava.




Foto da trilha bloqueada, feita por mim no banco.


Contudo algo anacrónico me distraía da beleza núbia do mais olímpico ébano. Como manda a lei e a solidariedade cívica, desde a porta de entrada estendia-se pelo chão e até um dos balcões de atendimento, o trilho táctil destinado aos cegos (que é assim o nome que me ensinaram em criança, sobre as pessoas com incapacidade visual e que nunca achei que fosse desrespeitoso). Só que chocado notei que sobre esse trilho tinham colocado cadeiras. Além de que, devido à má organização e gestão dos espaços, a fila de outro balcão se estendia igualmente sobre ela, quando deveria estar livre em toda a sua extensão. Eu mesmo, me via obrigado a permanecer sobre a trilha, para respeitar a minha vez.

Se as pensões que as pessoas recebem não fossem miseráveis, elas não teriam de correr logo pela manhã do dia de pagamento, para a boca do caixa. Se auferissem o bastante para viverem dignamente e com tranquilidade poderiam ir a qualquer hora e em qualquer dia fazer os seus resgates com dignidade. A dignidade que todo o ser humano merece. Tanto a pessoa a quem eu estava prestando uma ajuda, como a mãe do belo mancebo e ele próprio em todo o seu esplendor de beleza e juventude. Todos ali éramos seres humanos tratados como mercadoria, útil apenas para o enriquecimento dos banqueiros e accionistas bancários. 

domingo, 22 de julho de 2012

À LA CARTE

Enquanto a cavalgada corre em desfilada e a cáfila não sossega e se organiza salutarmente, vamos dar um pequeno passeio por coisas que gosto de olhar e apreciar.

Floresta ou catedral?


Anel de fogo


Pão e enchidos




Trabalhador negro
Foto por Adenor Gondim


Power House Mechanic 
Foto por Lewis Hine




Presuntos