quarta-feira, 30 de maio de 2012

7 COLUNAS

Praça Oswaldo Cruz, Recife

Sete colunas, que nada sustentam, no meio da praça ajardinada. Ao alto um céu azul, entre grossas nuvens de chuva dispersas. A tarde é quente e húmida. Desconfortável. Em bancos de jardim, arrumados com simetria ao redor, figuras torpes encenam gestos viciados dum quotidiano urbano estafado de mesmice. O casal que namora num, o andarilho deitado em sono profundo noutro, os colegas que se juntam, para um bate-papo no intervalo do trabalho, noutro mais além. Eu que observo tudo com o distanciamento de quem não pertence ali. Nem a parte nenhuma.

Pombos chegam e imediatamente começam a bicar na areia moldada por pegadas que levaram por rumos diversos a diferentes destinos. Transeuntes passam perto. Alguns nem dão pelas aves, seguindo absortos no emaranhado das suas vidas sem intento, decalcadas dos paradigmas de consumo duma civilização sem propósitos de glória. Vão cegos à verdade no entorno e invisíveis no seu decalque de tantos outros milhares, milhões que se assemelham e alastram num mundo adormecido no pesadelo: presente.

Um abismo abre-se, imenso, a meus pés. Um fosso sem fundo, dum negro inexpugnável. Do breu sobe um frio gélido, paralisante. Dói o pensamento e a alma congela. Elevam-se rumores de dor e mágoa. O mundo range de injustiça e sofrimento. Glórias passadas arrastam-se na praia duma nova esperança. Um novo desbravar florestas que escondam templos esquecidos. Mitos. Lendas. Uma salvação que tarda.



terça-feira, 29 de maio de 2012

BARREIRO

Vista aérea do concelho do Barreiro

Barreiro, na margem Sul do estuário do Tejo, frente a Lisboa. Onde eu vivi durante 41 anos. 

O município do Barreiro estende-se por toda a área inferior da imagem. A cidade propriamente dita é o aglomerado no canto esquerdo, junto ao rio. Logo ao lado, no canto direito da mesma margem, fica a vila de Lavradio, onde também morei, com a minha querida São. No canto inferior esquerdo pode ver-se parte da Mata da Machada, que se estende até à vila de Coina (fora da imagem), limite Sul do município.

No topo da imagem, acima do rio Tejo, estende-se Lisboa, onde eu trabalhava.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

CIGANOS E FAVELA



Estava frio e húmido. O vento havia espalhado folhas e ramagens pelas ruas imundas de lama e vendedores ambulantes, como sempre barulhentos e arrastando consigo toda a variedade de odores, embrulhados em roupagens bizarras e coloridas. Seguíamos em busca. Eu não sabia o endereço, mas confiava que lá chegaríamos.

Entre muros e vielas empedradas, subimos ao alto dum pequeno morro, donde se podia ver a cidade por cima e talvez pudesse encontrar alguma orientação. Sob o céu cinzento e nublado a paisagem se assemelhava mais a uma favela desordenada e caótica.

Fui admoestado por uma criança que o termo favela era incorrecto e proibido por lei; o termo adequado seria comunidade. As coisas que ensinam às crianças e as hipocrisias com que os governantes desmandam as nações. Favela lembra favo, colmeia, abelhas, mel. Mel é tão bom... Fluido, escorrendo doce. Imperecível.

Descemos para o emaranhado de ruas ignotas e ávidas de tráfego e gentes. Debaixo de toldos e sobre bancas, ofereciam-se mercadorias, apresentadas por sorrisos, alardes de pregão e convites insistentes, aborrecedores. Dum mostruário peguei um agasalho grande, fofo, branco-pérola, com gola de pelagem longa, astracã. Rodeio por mim e levei-o no braço.

Dentre bandos dispersos e saídos de trás duma tenda de bugigangas um grupo de belos ciganos se nos juntou. Indaguei-os sobre as suas intenções. Nunca é demais uma suspeita; ou deverei dizer uma cautela? Talvez a criança lá de cima me saiba indicar o que é correcto para os governantes. Mas ciganos, podem ser belos e sedutores – Ah isso eles são mesmo! Tanto uma como a outra. A arte de sedução é a sua cartilha de vida – mas da suspeita nunca se livram. A história carrega as suas lembranças e o povo tem memória dura de esquecer.

Espreitando entre rostos desconhecidos, portas entreabertas, muros em ruína duvidosa e ruas de destino incerto, prosseguimos até nos aproximarmos da margem do que parecia ser um rio tão largo como o mar. Dos cais ferrugentos e meio destruídos não partiam nem chegavam barcos. Limos e lixo rolavam entre calhaus, uns maiores outro menores, espalhados pela praia. Os ciganos sempre nos acompanhando, belos, simpáticos e servis. Mas de nada valia continuarmos ali, num porto sem partida e sem rumo.

De novo na praça central. Rostos sucedem-se em esgares de sorriso e espanto. Viciosos, lascivos, boçais. Olhei-te e exclamei: “Eles levaram o meu agasalho!” Olhámos em redor e os ciganos não estavam mais lá. Tudo parecia fugir para um horizonte que se fechava em nuvens e chuva. Em redor. Ao redor. E, olhando no teu olhar inquiridor, passei a mão pelo peito e suspirei: “Mas tenho ainda o meu casaco de pelica castanho...” E acariciei levemente o suave toque da camurça.

Nota: A ilustração é a pintura "Bahia" de Bob Dylan. Sim o tal que canta. Ele também pinta.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

BATA BRANCA




Esperei o fim da tarde e a trégua do flagelo solar. Estava farto de ficar em casa olhando o vazio imenso da tela do computador e das redes sociais. Saí e a noite iniciava-se calma e tranquilizadora. Com a música marcando o ritmo dos meus passos, lá segui de auscultadores nos ouvidos e apoiado na minha inseparável bengala.

Corpos reluzentes de músculo e esforço circulavam em corrida, pelo trajecto sinalizado ao redor da lagoa. O suor emprestava brilho às tezes morenas e viris daqueles que se expunham semi-nus (vestindo apenas calção, os praticantes mais esforçados e esbeltos) ao olhar deliciado e devorador,  dos que sabem apreciar a beleza do corpo masculino.

No parquinho infantil crianças gargalhavam nos engenhos de diversão, sob o olhar avisado dos pais e mães que se juntavam em pequenos grupos comentando as habituais banalidades de ocasião. Nos quiosques-bar convivas confraternizavam indiferentes à verborreia omnipresente dos infalíveis televisores. Idosos, de ambos os sexos, também improvisavam o seu treino de manutenção da longevidade saudável, caminhando em duos ou trios, envergando com orgulho as suas roupas desportivas e calçado apropriado. Toda a gente queria se sentir bem com a vida, tranquilo e animado.

Num recanto sossegado, mas de passagem obrigatória, bem visível e acessível para todos, estava uma mesa de esplanada, com duas cadeiras. Numa das cadeiras uma mulher jovem, envergando uma bata branca, dialogava animadamente com um grupo que se tinha reunido em volta. Sobre a mesa percebi instrumentos médicos de auscultação e medição de pressão arterial.

Sorri feliz por saber que há gente que se lembra de cuidar dos outros, mesmo no seu tempo de laser. Sem se importar de prolongar um pouco mais o seu dia de trabalho, mesmo que seja em regime voluntário e sem remuneração.

domingo, 20 de maio de 2012

LILITH




É o símbolo da liberdade sexual da mulher e da sua paridade com o homem. Daí ter sido diabolizada, referida como demónio, monstro, vampiro, por todas as religiões e tradições machistas.

Lilith teria sido a primeira mulher, moldada do pó da terra juntamente com Adão. Mas como ela não aceitava a sua submissão a ele, foi preterida e substituída por Eva. Esta sim, disposta à subserviência e resignação.

Os mitos de Lilith foram, como tudo o mais da tradição do Livro (a Bíblia), trazidos e deturpados do seu sentido original, pelos judeus do seu cativeiro na Babilónia.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

HISTÓRIA PRO CARA...



A tarde estava quente e o sol reinava alto e estourava de calor. As ruas da cidade velha estavam desertas. Abandonados e trocados, por caixotes habitacionais incaracterísticos na periferia, os edifícios do centro histórico esperavam a misericórdia duma politica de revitalização urbana que os trouxesse à vida. E assim, entre fantasmas históricos de alvenaria, prosseguíamos rumo ao nosso destino.

Falhei na escolha do percurso, pelo que tivemos que atalhar caminho por uma transversal, igualmente deserta. À excepção dum vulto deitado na beira da estrada, na sombra dum prédio. Era um homem não-velho, embora gasto e carcomido pelo tempo, como todos os que não têm tecto e subsistem pelas ruas, imundos e assustadores. Jazia semi-nu e adormecido. A única coisa que vestia eram uns calções de ganga desabotoados e de onde se expunha o pénis que ele segurava com uma das mãos.

Passámos. Perplexo e divertido, perguntei ao meu companheiro: - Viste?

E assim se manda a História para o cara...!

segunda-feira, 14 de maio de 2012

WWW


Poucos conhecerão o rosto simpático da foto. Assim também como o nome Tim Berners-Lee nada diga para muitos, mesmo muitos, de vós que estais aqui lendo este texto. Esse rosto e esse nome são do criador da internet. A www que todos conhecemos e usamos.


Esse senhor, Tim Berners-Lee, idealizou e criou um sistema de comunicação de massas livre e gratuito. E ainda hoje continua lutando pela liberalização e gratuitidade dessa sua criação.


Foram as grandes corporativas do ramo que se opuseram a essa liberdade e impuseram a regra capitalista do lucro a todo custo e sobre tudo. Assim, aquilo que poderia e deveria, ser de acesso geral e um serviço público sem custos, tornou-se um dos maiores negócios da actualidade.


Pessoal! A internet foi criada para ser de acesso livre e gratuita! Não deveríamos pagar um tostão furado, que fosse, para aqui estarmos e partilharmos nossas experiências e saberes.


Continuamos a ser os escravos do capitalismo selvagem e omnipotente!

quarta-feira, 9 de maio de 2012

VALTER



Parado na esquina, da movimentada avenida central com uma pequena rua lateral. Detenho-me por alguns momentos observando apenas o buliço de gentes e viaturas. Sem rostos, sem destinos, apenas vultos que se cruzam no rugido da urgência alienada.

Uma voz corporiza-se à minha frente, num rosto que me interroga por trás duns óculos escuros: - Desculpe! O Senhor chama-se Valter?

O meu olhar desce por um braço que segura um rosto feminino, divertido com a situação.

- Não. – Respondo num sorriso simpático e feliz por alguém, naquele tumulto, ter-se identificado com outro ser humano.

- Desculpe, - insiste ele e com simpatia, explica-se - mas tenho um amigo que é exactamente a sua cara e a sua fisionomia. Até ia para lhe dizer: “Cara, tu não mudas, nem envelheces! Estás sempre na mesma!”

E com o acender do semáforo verde, o encontro diluiu-se no calor da tarde.


Nota: O modelo da foto é o português Valter Carvalho. Desconheço o autor da mesma.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

DOIS HOMENS



A mesma tarde. A mesma rua. O mesmo calor. A cidade repete-se na sua exaustão ad-infinitum.

Eu prossigo a minha caminhada calma. A contra-tempo dos restantes transeuntes que se apressam febrilmente. O objectivo é o mesmo para todos: continuar sobrevivendo. Mas já nem filosofo a respeito. Deixo que o mundo corra, enquanto eu continuo observando da janela do meu vagão.

Passo a passo, por vezes parando aqui e além, sempre olhando em redor. Cada rosto, cada corpo, cada ser conta uma história. Cada alma traz em si um mundo, um universo.

Por mim passam, em passo animado e solto, dois homens com a tez bronzeada de quem vive na rua. Vestem com a informalidade e mau gosto dos vendedores ambulantes, que pululam pelo centro caótico de muvuca* e alarido. Mas o seu ar descomprometido e fanfarrão indica logo que não o são. Embora humildes, as roupas são cuidadas e novas, assim como os corpos mostram o brilho de quem se cuida e quer marcar status. São robustos, mas esbeltos e a sua virilidade é cativante. Fico seduzido e atento. Divirto-me com o aflorar da libido disparando testosterona por todos os poros. E tenho a certeza que se alguém olha-se nos meus olhos com atenção, veria um brilho de lascívia os iluminando.

De repente param. Um deles tira uma câmara digital do bolso e, encobertos por um camião estacionado começam a fotografar a fachada e a passagem para as traseiras, duma sucursal bancária no outro lado da rua.

Resta ficar atento aos noticiários, nas próximas semanas, sobre a notícia de mais um assalto a um banco.


Nota: *muvuca = grupo de pessoas fazendo bagunça, desorganização, confusão.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

BANHO NA PRAÇA

Há gente que mora na rua


Tinha muito tempo ainda. Havia chegado bem cedo e dispunha de longos minutos de espera, pelo que resolvi virar para uma rua que ainda não havia percorrido.
Altas e frondosas árvores ladeavam o asfalto por onde passavam viaturas em busca do tráfego infernal da avenida central. Eu caminhava calmamente desfrutando da sombra e do afastamento do buliço neurótico da turba consumista.

A ruela desembocava num praça estreita e longa, ajardinada e com um lago onde suponho já terem existido patos ou outras espécies de aves aquáticas. Era um local acolhedor e tranquilo, dentro da cidade febril e neurótica. Do lado em que eu caminhava estendia-se um edifício de estilo neo-clássico, com um só piso, mas não deixando contudo de ser imponente. Caminhei ao longo dele apreciando cada detalhe. Sentia a paz do lugar me invadir e sossegar o corpo e o espírito, inquietos pelo trepidar urbano.

Chegado ao fundo da praça, resolvi retornar pelo mesmo caminho, pois a hora do meu compromisso aproximava-se. Ao passar de novo pelo lago, deparei-me com uma cena que me fez parar, para observar discretamente. Um jovem sem-abrigo, semi-nu, apenas vestindo uma bermuda e descalço, ensaboava-se na beira do lago. Bastante espuma na cabeça, cujo cabelo ele esfregava com vigor. Depois pegou um baldão que tinha ao seu lado, encheu-o no lago e despejou a água amarelada sobre si.
Retirado todo o sabão e espuma do corpo, o jovem tornou a encher o baldão e voltando-se, caminhou até uma camisa que estava estendida sobre uma laje perto. Despejou parte da água sobre ela, ajoelhou-se e com o sabão com que se tinha banhado, começou a esfregar a camisa.

As suas costas molhadas reluziam ao sol da tarde.