Estava frio e húmido. O vento
havia espalhado folhas e ramagens pelas ruas imundas de lama e vendedores
ambulantes, como sempre barulhentos e arrastando consigo toda a variedade de
odores, embrulhados em roupagens bizarras e coloridas. Seguíamos em busca. Eu
não sabia o endereço, mas confiava que lá chegaríamos.
Entre muros e vielas empedradas,
subimos ao alto dum pequeno morro, donde se podia ver a cidade por cima e
talvez pudesse encontrar alguma orientação. Sob o céu cinzento e nublado a
paisagem se assemelhava mais a uma favela desordenada e caótica.
Fui admoestado por uma criança
que o termo favela era incorrecto e proibido por lei; o termo adequado seria
comunidade. As coisas que ensinam às crianças e as hipocrisias com que os
governantes desmandam as nações. Favela lembra favo, colmeia, abelhas, mel. Mel
é tão bom... Fluido, escorrendo doce. Imperecível.
Descemos para o emaranhado de
ruas ignotas e ávidas de tráfego e gentes. Debaixo de toldos e sobre bancas,
ofereciam-se mercadorias, apresentadas por sorrisos, alardes de pregão e
convites insistentes, aborrecedores. Dum mostruário peguei um agasalho grande,
fofo, branco-pérola, com gola de pelagem longa, astracã. Rodeio por mim e
levei-o no braço.
Dentre bandos dispersos e saídos
de trás duma tenda de bugigangas um grupo de belos ciganos se nos juntou.
Indaguei-os sobre as suas intenções. Nunca é demais uma suspeita; ou deverei
dizer uma cautela? Talvez a criança lá de cima me saiba indicar o que é
correcto para os governantes. Mas ciganos, podem ser belos e sedutores – Ah
isso eles são mesmo! Tanto uma como a outra. A arte de sedução é a sua cartilha
de vida – mas da suspeita nunca se livram. A história carrega as suas
lembranças e o povo tem memória dura de esquecer.
Espreitando entre rostos
desconhecidos, portas entreabertas, muros em ruína duvidosa e ruas de destino
incerto, prosseguimos até nos aproximarmos da margem do que parecia ser um rio
tão largo como o mar. Dos cais ferrugentos e meio destruídos não partiam nem
chegavam barcos. Limos e lixo rolavam entre calhaus, uns maiores outro menores,
espalhados pela praia. Os ciganos sempre nos acompanhando, belos, simpáticos e
servis. Mas de nada valia continuarmos ali, num porto sem partida e sem rumo.
De novo na praça central. Rostos
sucedem-se em esgares de sorriso e espanto. Viciosos, lascivos, boçais.
Olhei-te e exclamei: “Eles levaram o meu agasalho!” Olhámos em redor e os
ciganos não estavam mais lá. Tudo parecia fugir para um horizonte que se
fechava em nuvens e chuva. Em redor. Ao redor. E, olhando no teu olhar inquiridor,
passei a mão pelo peito e suspirei: “Mas tenho ainda o meu casaco de pelica
castanho...” E acariciei levemente o suave toque da camurça.
Nota: A ilustração é a pintura "Bahia" de Bob Dylan. Sim o tal que canta. Ele também pinta.
4 comentários:
Que legal... este ambiente nos remete à África ou ao Brasil?
Nunca me sinto confortável com pessoas me seguindo... trato logo de apertar o passo e sumir da rota...
Parece um relato minucioso de um sonho.
Nunca havia pensado na origem do nome favela. Interessante.
Beijos, queridão.
que bobagem esta do termo favela. esta coisa politicamente correta é uma bobagem sem fim!
e crianças metidas a sabichonas são tão chatas... rs
sobre o post para mim me parece um sonho misturado com fatos reais, mas o que importa é que está muito bem escrito.
como sempre!
beijos
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