terça-feira, 14 de janeiro de 2014

ABORTO


Toda a gente tem opinião sobre o aborto. Ou pretende ter. Todos dão os seus vaticínios, apoiados em pressupostos morais/religiosos ou científicos. Todos clamam pelo direito à vida. Todos reclamam o direito da mulher ou do divino. Mas não oiço ninguém falar sobre o direito do feto. Ainda não vi ninguém dar a voz ao feto; escutar sobre o que ele tem a dizer e qual o seu parecer sobre uma decisão que, acima de tudo, o envolve a ele e da qual depende toda a sua existência e o seu futuro; senão mesmo a sua dignidade humana.

Eu nasci. Eu era um feto condenado ao aborto e nasci. Por isso me sinto mais no direito de falar em causa própria que todos os outros! A minha é a opinião da experiência vivida no antes e no após. Opinião livre de moralismos e dogmas, pretensamente piedosos de religiosos fanáticos e outros ignorantes afins.

A vida do feto nada tem de religioso ou transcendente, pelo que a religião deve se calar de dar pitaco sobre o que não lhe cabe. O feto tem consciência! O feto sente! O feto tem existência emocional! O feto tem alma!

O feto comunga das emoções da mãe. Têm mais a uni-los que apenas o cordão umbilical. E isto deveria ser do conhecimento daqueles que, embora se digam religiosos, pouco parecem saber de espiritualidade. Os medos e preocupações da mãe são partilhados pelo feto. E do mesmo modo as decisões que a este dizem respeito.

Foi através da memoria dessa partilha que eu vim a saber que a minha mãe estava disposta e determinada a abortar, quando percebeu que estava grávida (de mim, no caso). E também assim senti, ao longo do tempo que permaneci no seu ventre, a rejeição e as dúvidas que ela tinha por mim. Não, eu não era a sua primeira gravidez; tenho duas irmãs mais velhas.

Nasci porque o meu pai, movido do seu catolicismo, cristianismo, puritano, moralista, se opôs ao aborto, pelo que a minha gestação foi uma luta constante de sentimentos e emoções antagónicos, em que eu sentia o quanto era indesejado e disputado. E de todo esse conflito, ficou a matriz de conflito interno que me marcou para toda a vida. Sempre vivi com o estigma, em forma de sentimento de rejeição, que nenhum psicólogo pode apagar. Sempre me senti rejeitado! Não há amor ou dedicação que consiga apagar essa chaga em mim. Sempre me senti desesperadamente só e disputado, sem que alguém me escutasse.

Não, a culpa não foi da minha mãe. Ela estava no seu pleno direito de não querer ter mais um filho; mais uma dúvida. A culpa não foi de ninguém, senão mesmo dum moralismo cruel e desumano! Se me perguntarem se eu preferia ter nascido ou a minha mãe ter-me abortado, eu sempre responderei: ela deveria ter abortado!

Tive uma vida plena de experiências e aventuras; algumas nem tão felizes. Mas preferia ter nascido de outras condições e não por mera teimosia e combinação de acordo de interesses. Se não tivesse nascido desta, teria tido outra oportunidade de vir ao mundo, sob outras condições e com outros propósitos. O meu quinhão de vida não se perderia naquela chance. Como entidade espiritual, eu teria liberdade de escolher outro momento para voltar à vida entre os demais neste mundo. Nascer por direito próprio e não por egoísmo alheio.

Por isso meu lema será sempre: Deixem a mãe e o feto decidirem sobre eles mesmos!