Stillness
Poderia começar este texto de tantas maneiras... Poderia ter-lhe dado tantos títulos...
Venho falar do passado. São 4.30h da madrugada e acordei dum sonho em que estava no parque do Barreiro (cidade onde vivi a maior parte da minha vida) com amigos, uns que me acompanham ainda deste lado da vida e outros que já partiram para a outra margem. Venho falar de saudade... Da saudade do tempo em que fotografava e organizava exposições como o resultado do meu trabalho artístico. Trabalho a que devotava todo a minha criatividade, assim como todo o meu dinheiro, que deveria guardar para comer e vestir... mas eu insistia em dizer que queria viver para a Arte e da Arte. Vivi para a Arte, mas ela nunca me retribuiu com o sustento material. Esse sempre ficou ao encargo dos meus amigos e familiares. Sucesso?! Sim, tinha-o! Sucesso e reconhecimento, tanto público como artístico. Os convites para novas exposições repetiam-se sempre.
Um dia deixei de fotografar. Perguntaram-me porquê. Respondi que já havia feito aquilo que me tinha proposto fazer. Já havia mostrado aquilo que me tinha proposto mostrar. A partir daí seria repetir-me. Mas deixara sementes... Algumas floresceram no trabalho do meu primo Ramarago, que preferiu trocar a sua juventude por infindáveis tardes dactilografando (na época ainda não haviam computadores pessoais) os meus poemas e outros escritos também meus, assim como observando à minúcia os meus trabalhos plásticos.
Sempre quis fotografar a luz; e era a isso que me dedicava, mesmo quando passei a fotografar modelos humanos. Muito do meu trabalho fotográfico era abstracto, para que os olhos não se prendessem no imediato da forma reconhecida, levando a que a mente de quem olhava divagasse por ideias e emoções em busca dum sentido para aquilo que se apresentava perante si. Os títulos eram sempre sugestivos para mais caminhos de fuga e contemplação, que sugeriam ainda mais leituras e quase sempre debates com aqueles que me procuravam para, através dessas conversas, fazerem algo que muitos deles nunca lhes teria passado pela cabeça: discutir Arte. Pois muito do meu público era gente comum que “nada entendia de Arte”, como eles próprios diziam. Mas a Arte é para todos e não para os entendidos. A arte que é feita para os entendidos não é Arte: é snobismo!
Esta foto que hoje apresento e me sugeriu este texto/confissão é a expressão suprema do que quis fazer com a fotografia. Costumo referir-me a ela como a “minha Gioconda”. Chamei-lhe “Stillness” (uma palavra inglesa) por não ter encontrado no riquíssimo vocabulário português uma palavra que melhor exprimisse aquilo que a foto transmite. Também lhe poderia chamar de “Drág” em Djeyvox (minhas amigas Mari e Hürrem, o que vedes na expressão do menino/modelo é aquilo que outro dia eu vos tentava explicar), mas tal seria para vós o mesmo que chamar “sem título”. E porque esta foto é tão importante assim, para que eu veja nela a síntese de todo o meu trabalho em fotografia?
A luz. A luz suave, embora passando por vários cambiantes de intensidade, é o que liga todos os elementos plásticos e emocionais da foto. Ela é mais intensa no alto e sombria na base, sendo macia no rosto do modelo. A expressão tranquila do menino, que parece adormecer encostando a cabeça ao muro, mas com um leve sorriso que oscila entre uma branda felicidade meditativa e a malandrice duma criança que se prepara para fazer uma traquinice; essa expressão contrasta com o esforço das mãos que se fecham em punho contra o muro. Mas tudo isso flui com uma tranquilidade angelical.
Convido-vos a que continuem apreciando e analisando a foto a vosso bel-prazer, tirando as ilações que mais vos aprouver. Se o fizerdes será o melhor elogio que me podereis prestar.
O menino/modelo é o Bé. Tinha então uns 10 anos (foi à uns 20 ou 25 anos). Adorava ir para minha casa nas férias da escola, e passava tardes falando comigo e deixando-se fotografar, com uma paciência infinita e uma plasticidade expressiva dum modelo profissional. A essa plasticidade se deve o sucesso desta foto, pois não pensem que foi um instantâneo de sorte, em que casualmente apanhei um momento feliz e o prendi para a eternidade. Nada disso! Tudo que vêm na foto foi meticulosamente trabalhado e montado; com muito de “faz assim...”, “não tanto!”, “mais!”, “menos!”, “força!”, “suavidade!”, “sorri!”, “só sorriso, não é riso!”, estás muito tenso!”, “inclina mais um pouco...”, “não tanto!” e por fim o “está bom!” era dado pelo clique do obturador.
Um instante feito de muitos minutos de trabalho paciente e dedicado.
11 comentários:
Não devias ter deixado de fotografar, sempre to disse.
Esta fotografia está espantosa, sem dúvida.
Um abraço duplamente saudoso, Fotógrafo.
O que posso dizer? "CLAP! CLAP! CLAP!" Aplausos e mais aplausos e engrosso o coro com a São: "Não devias ter deixado de fotografar!"
Lindo texto, linda foto, enfim, um post perfeito!
Amo te
Oh, que beleza de trabalho!
Não sabia que também tinha este talento, pensava que era só para as letras.
Não deverias mesmo parar, pois sinto uma grande capacidade em burilar e trazer o belo à tona.
A foto realmente é de uma beleza plástica intensa. Parabéns!
bjs cariocas
Caro amigo, fiquei encantada com a foto. Que belo trabalho! O menino me passou um empção tão intensa...me pareceu que ele estava entre o sorriso e a lágrima, como que a lembrar-se de algo que não gostaria de esquecer. Belíssima foto, aliás a brevidade do instante que uma fotografia capta, não nos dá conta do trabalho para que esse instante fosse captado em toda a sua beleza e plenitude.
Obrigada por partilhar essa época de tua vida conosco. Realmente, és um excelente artista com a câmera e também sem ela. Beijos meu amigo, obrigada por participar de minha enquete lá no Café.
A fotos está linda mesmo. Acho que não conseguiria expressar em palavras como você fez, mas ela passa uma sensação boa. Imagino que deve dar um trabalhão conseguir fazer uma expressão dessa artificialmente... acho que é por isso que dou tanto valor ao espontâneo...
Beijos Mandrag!
Amigo ManDrag escrevi varias coisas e tudo sumiu!!!
Bom, para resumir,cada dia descubro um novo talento teu, que surpresa bem boa! Faço coro com os colegas acima e digo que tens que voltar a fotografar! Sobre a foto, depois de analisar, ficou uma sensação no ar: o menino está com um dos punhos fechados vistos do lado de fora, a outra mão na verdade está semi aberta..estará esse punho fechado na verdade semi aberto como a mão oposta mas não podemos ver porque de fora apenas vemos a parte externa fechada da mão? Fica o mistério da fotografia guardado para a eternidade, assim como o sorriso da Monalisa...
Um abraço com amizade.
O Bé é lindo!
Lembro da sua descrição,de que "Drag" não tem uma tradução na nossa língua...
Depois de ver a foto dá pra entender o porquê :) Até mesmo o que transmite o Bé é meio misterioso. Ao mesmo tempo transmite aquele estado que parece em constante tranquilidade.
Amigo, deverias, quando houver tempo, fotografar um pouco mais.
Abração!!!
De tudo, o que mais há a dizer é: volta a fotografar!
Abraço.
SIM, meu Primo... o Bé é uma alma pura que já está noutra dimensão superior, esta tua foto é uma prova que também sabias fotografar "Almas"... é isso que "tento" fotografar e seguir as tuas pegadas, pegar naquilo que me ensinastes e continuar... ás vezes é dificil quando a criatividade não reina e a luz da energia me foge da ponta dos dedos... no entanto continuo a achar também que não devias de ter deixado de fotografar... a LUZ, como sabes, é sempre diferente... Beijo
Caro Man,
Depois de muito embalar sua "criança" venho aqui ousar minha visão sobre "stillness".
A beleza é inegável.Textura, cores e forma absolutamentes balançeadas! A boca fresca da juventude refletindo um quase cereja, .."esplendor na relva, glória de uma flor".. ( parafraseando William Wordsworth )
Voce é um criador e tenho certeza que não se esqueceu disso. Apesar das dificuldades do "viver de arte", vejo que "viver para arte" é seu domínio inato.
Posso aumentar o coral das vozes pedindo que volte a fotografar, mas sei o que é o fim de um ciclo e entendo e acolho. Arte é essencialmente a expressão do ser. Onde vc colocar a sua mão, a arte irá brotar. É a sua natureza, Man!
Eu devo dizer, Man, que a arte, tal como a entendo, deficitariamente, claro, é a expressão desse algo mais interno nosso, que só consigo exprimir como toque. A arte é, em última instância, tátil. Sua expressão que toca a minha. E quão tocado estou por Stillness! Meus deuses, que coisa linda! A luz, a leveza, o menino, o sorriso. Estou profundamente tocado por essa foto.
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